Lembro de uma vez que estava contando sobre algum episódio qualquer da minha infância na terapia e toda hora eu interropia o relato para me justificar: eu não sei se foi isso exatamente que aconteceu, já faz muito tempo, mas lembro que…
Minha terapeuta então, sentindo minha insegurança, pontuou um aspecto muito importante sobre a nossa dinâmica ali que até então eu não percebia:
Dentro daquela sala, quando minha experiência é o centro da conversa, não é tão importante assim o que de fato aconteceu, o que é, digamos assim, fato ou fake. A gente não estava falando da história em si, afinal, mas da minha leitura sobre o que vi e vivi e sobre o que ficou daquilo em mim, e era nos meus sentimentos e percepções que o nosso trabalho conjunto deveria focar.
Não é papel de um terapeuta sair ligando para cada uma das pessoas mencionadas na terapia para fazer perguntas e checar fatos. Isso, aliás, comprometeria completamente o processo que precisa de sigilo e ambiente com um vínculo seguro para acontecer. De todo modo, foi daquele dia em diante que eu passei a prestar atenção como é muito útil se dar conta de que quase tudo na vida é uma interpretação. Como eu enxergo, como eu entendo ou como acomodo dentro de mim o que me acontece. Não porque eu sou a dona da verdade, mas porque eu sou a única parte sobre a qual tenho pleno entendimento e responsabilidade, e portanto, é só sobre a parte que me cabe que eu tenho ingerência.
Entender isso é parte importante no processo de autoconhecimento. Te permite reconhecer suas subjetividades e, eventualmente, abrir espaço não só para reconhecer como as subjetividades de outras pessoas interagem dentro de você, mas também que as demais pessoas tem esse mesmo direito de dar sentido da forma que sabem e que querem ao que lhes acontecem.
Fiquei lembrando desse aprendizado depois de entrar de cabeça no assunto mais comentado da internet essa semana: as falas desconexas de Vanessa Lopes, tiktoker e uma das participantes do BBB24. Ela se descobriu no centro de um fofoca e, sem saber em quem acreditar ao fazer perguntas aos envolvidos, surtou (queria encontrar uma palavra mais cuidadosa para usar, mas não achei, sorry). Vanessa, então, comecou a criar histórias conspiratórias, rivalidades inexistentes e intenções maquiavélicas em outros participantes e até em objetos na casa, tudo com a intenção de fazer ela parecer uma lunática. Vanessa ficou tão perdida em como dar sentindo ao que vivia que, falando frases cortadas e confusas, dizia “agora eu estou enxergando tudo de verdade”.
Passei um dia inteiro pensando como ela reagirá quando sair do programa e for confrontada com suas atitudes (atualização: ela acabou de apertar o botão e desistir do programa). Como ela vai lidar com a forma como ela interpretou os acontecimentos de forma tão diferente dos fatos em si.
Porque veja, muito embora as pessoas tenham todo o direito do mundo de dar um sentido próprio ao que lhes acontece (sem nem entrar no mérito do que é apenas interpretação e o que é invenção), isso não quer dizer que suas interpretações não tenham consequências e não exigam responsabilidade - especialmente quando se participa de um reality show. Eu fico imaginando como vai ser duro atravessar esse processo de responder por si com o “Brasil todo” assistindo. Como a vergonha vai ser difícil de digerir, como vai ser duro o trabalho de dar lugar a esses acontecimentos dentro dela, de sair de uma convicção absoluta para um “eu entendi tudo errado”.
Se na vida normal isso já é bastante desafiador, imagina como todo esse processo será ainda mais complexo para ela.
Ao assistir o BBB, essa programa de formato questionável que eu continuo acompanhando de uma forma ou de outra, acho que é isso que fica em mim: como a vida se dá a partir da nossa interpretação, como nossas experiências prévias nos fazem entender a vida e como é, mais do que nunca, importante que a gente atravesse à tentação de sair dando diagnósticos para os outros (algo inútil e perigoso) para usar esses episódios para falar de coisas mais importantes, nós mesmos.
Antes da terapia eu nem sabia que poderia olhar para a vida e reconhecer que ela é construída com base nessas interpretações individuais (ainda que inseridas num contexto coletivo) e que nem sempre as minhas interpretações sobre mim ou sobre os outros são as mais realistas. Foi com a terapia, aliás, que aprendi algo ainda mais importante: que é possível ler o que me acontece de uma nova forma, de um jeito que não me deixe presa ao passado - sentindo raiva, revolta, vergonha, amor ou qualquer outra coisa.
Do mesmo jeito que automaticamente interpretamos o mundo enquanto a vida nos acontece, podemos parar e refletir para descobrir novas interpretações para os fatos:
O que eu posso fazer com isso que me aconteceu?
O que eu posso fazer com o arrependimento por ter agido dessa forma?
Como recontar essa história dentro de mim e seguir em frente?
Que a gente possa encontrar - com terapia, mas se não for possível, sem ela também - esse espaço seguro dentro de nós para o autoperdão. Para a capacidade de reconhecer interpretações equivocadas e aprender, mudar, crescer. É essa evolução que dá sentido à vida.
Boa sorte à Vanessa - e também à nós, que não estamos imunes, mesmo sem participar de um reality show, de ter a mesma experiência. Que a dificuldade desse processo de reconhecimento de interpretações equivocadas não nos impeça de expandir os nossos horizontes e criar novas narrativas de vida para nós mesmos.
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fiquei um pouco assustado com o "surto" (também não sei que palavra melhor usar) da vanessa. diante do "estrago" (falta aqui também uma palavra melhor) na imagem dela, acho que a saída dela foi a opção mais acertada. fora da casa, e um pouco mais protegida dos olhares do público, ela vai poder encontrar acolhimento e uma maneira de lidar com tudo o que aconteceu.